A
COSMOLOGIA ISMAELITA: 1. Considerações
iniciais Os estudos das cosmologias poderão sempre nos revelar a visão de mundo das diversas tradições, e a perspectiva do ser humano no seu papel frente o universo, bem como o propósito e a origem de ambos. A beleza maior
está em reconhecer nestas diferentes perspectivas os segredos e indicações
sob roupagens diferentes. Cada uma poderá apresentar características
distintas com tendências mais ou menos espirituais, filosóficas,
científicas, artísticas, míticas ou lendárias dependendo
do contexto, influências ou propósitos nas quais foram desenvolvidas. E estas tradições
e seus conhecimentos que despertaram nosso interesse por apresentarem relações
com a filosofia Ishraq, apresentam uma cosmologia com perspectivas mais teológica
e metafísica. E assim definem não só uma visão de
mundo, mas principalmente um caminho de retorno a Origem, Fonte Criadora. Portanto
muito mais do que uma teoria para a Gênese do Universo, elas representam
uma prática de aquisição de conhecimento e um mapa para
o desenvolvimento do Ser Humano na sua trajetória na busca pelo Criador. A cosmologia Ismaelita,
como a própria tradição, tem origem no xiismo Islâmico
como foi já descrito no artigo O
LEGADO ISLÂMICO. Além da existência de diferenças
na apresentação desta cosmologia dentro dos diferentes grupos
no próprio Ismaelismo, vemos nela muitos pontos comuns com diversas outras
fontes, tanto anteriores como posteriores. As principais fontes anteriores são
Persas do Zoroastrismo, Mazdaísmo e Zervanismo, fontes Gregas de diversas
escolas, e fontes Gnósticas, além daquelas oriundas das revelações
do Profeta, através do Corão e de seus ditos (hadits), bem como
dos Imãs. Em relação
a fontes posteriores onde encontramos seus traços, principalmente dentro
do Islã, temos al-Farabi, Avicena, a filosofia Ishraq, os Irmãos
da Pureza (Ikwan al-Safa), e muitas escolas ou Mestres Sufis. A dificuldade
em traçar um filiamento destas fontes com o movimento Ismaelita, ou mesmo
xiita, vem do fato da tradição aconselhar seus membros a dissimularem
sua origem quando fora da comunidade para evitar perseguições.
Por tanto, por mais semelhante que sejam os sistemas, por mais evidente que
possa parecer tais filiações, e independente das discussões
acadêmicas não podemos afirmar com certeza certas fontes. Antes de introduzirmos
o mistério que a cosmologia Ismaelita nos apresenta em uma de suas fontes,
iremos traçar as linhas gerais de tais conceitos comuns à maioria
delas. Seguindo a idéia
neoplatônica da emanação de Deus, Absoluto e Uno, que através
do Intelecto (Logos) e da Alma Universal dá início ao processo
da Criação, a cosmologia Ismaelita se desenvolve. Nela, Deus se
torna absolutamente transcendente, além de qualquer atributo, e é
através de Seu Comando, ou Vontade, que tem origem o Primeiro Intelecto,
A Primeira Luz, O Arcanjo Primordial, chamado de Kuni, derivado do imperativo
criativo de Deus Kun, Seja. Outro nome que recebe é Sabiq, o Predecessor,
é da emanação de sua Luz que é gerada a Alma Universal,
Qadar, o Determinador, também chamado de Tali, o Seguidor. Este par é
associado aos termos corânicos, Pena (Qalan, Aql), e Tablete (lawh). É através
desta díade que o Comando Divino traz o pleroma, o mundo espiritual,
à existência. Seguindo, o Primeiro Intelecto cria de sua Luz sete
Arcanjos, ou Querubins, e a Alma Universal através do comando do Intelecto
traz à existência e nomeia doze entidades espirituais a partir
de sua Luz. Na cosmologia Ismaelita, como na maioria das tradições
esotéricas e gnósticas, o mundo é uma representação
da dimensão espiritual, assim os sete Arcanjos estão relacionados
aos sete Planetas e Céus, e as doze Entidades aos signos zodiacais. Assim,
numa ordem hierárquica, são criados também os elementos
e as quatro qualidades, dando início ao surgimento da matéria
e do mundo material. Mas o Universo
inteiro é um retorno, em cada Intelecto, em cada dimensão emanada
do Princípio está contida a busca pela Perfeição
de onde emana. Esta necessidade, este amor, este retorno é o horizonte
de cada Intelecto, de cada Arcanjo, de cada Alma e de cada Céu. E é
deste amor que o Universo é posto a girar, inebriado e apaixonado na
esperança de retornar à Luz Primordial da Presença de Deus. A partir desta
cosmologia básica, toda a doutrina Ismaelita é desenvolvida. O
tempo ganha uma característica cíclica pontuada por sete períodos,
cada um relacionado com um Intelecto, Arcanjo e planeta. Cada período
seria inaugurado por um Profeta, chamado também de o Anunciador (Natiq),
que seria seguido por um Representante (Wasi), também chamado de o Silencioso
(Samit). Estes seriam então seguidos, em cada era, por sete Imãs,
dos quais o sétimo surgiria como o Anunciador da próxima era.
Os Anunciadores
das seis primeiras eras de nossa história foram, Adão, Noé,
Abraão, Moisés, Jesus e Maomé, que tiveram como Representantes
respectivamente, Set, Shem, Ismael, Aarão, Simão Pedro e Ali.
Caberia aos Profetas a revelação da Lei Divina e seus aspectos
externos e exotéricos, e aos representantes a revelação
dos aspectos ocultos e esotéricos para os iniciados nos mistérios
da Verdade da revelação, bem como a preservação
da Tradição no decorrer de cada era. No final da sexta
era, Muhamad Ismail, sétimo Imã da tradição Ismaelita,
se tornaria o Mahdi, o Imã oculto, que só retornaria no final
da era para anunciar o início da última. Nesta última
era, numa perspectiva escatológica messiânica, seria revelado o
segredo da Verdade oculta em todas as revelações para toda a humanidade.
Este Imã se tornaria então o Qaim, o Ressuscitador, anunciando
o fim dos tempos e o prevalecimento da Verdade e Justiça Divina. Neste esquema conseguimos
discernir a grande influência Zoroastra, que mesmo que poucas vezes reconhecida,
penetrou e transformou o próprio Judaísmo, e através dele
o Cristianismo e o Islamismo. A tradição
Zoroastra é muitas vezes erroneamente interpretada, pois é analisada
dentro da perspectiva de suas interferências posteriores por parte da
tradição dos Magos do Sabeanismo, Mazdaísmo e Zervanismo,
que sem dúvida expressavam uma dualidade bem mais forte. Mas a visão
que o Zoroastrismo apresenta abre caminho para uma ética do Ser Humano
e o próprio conceito de seu livre arbítrio. Pois a partir da decisão
do Ser Humano frente à dualidade presente no Universo, é que os
eventos e o destino a Criação eram definidos. O papel do ser humano
era estreitamente ligado à uma angeologia, que é a base da angeologia
das tradições monoteístas. E é nela que encontramos o mistério da tradição Ismaelita, sua missão, o propósito do ser humano, bem como a própria gênese da Criação. 2. O rompimento
da Eternidade. É exatamente através da figura de um dos Arcanjos que se desenvolve a angeologia e a cosmologia de uma das fontes do Ismaelismo. E será o Arcanjo Gabriel, também importante em outras tradições, o protagonista deste mistério. Ele é reconhecido como o Anjo da Revelação no Islamismo, responsável pelo chamado do Profeta Maomé, bem como a revelação do Corão. Ele está relacionado com o Espírito Santo, tanto no Islã como no Cristianismo, e também no Zoroastrismo através do nome de Sraosha, o Anjo da Humanidade. Ele é também figura central na filosofia de Avicena e Suhrawardi, que o identificam com a décima Inteligência, o Demiurgo, Doador de formas, de quem emanam as Almas Humanas. E é neste ponto que vemos a semelhança entre as cosmologias de Al-Farabi, Avicena, Shurawardi e os Ismaelitas, com a diferença de que Deus não é designado como o Ser Necessário dando origem às emanações das Inteligências. Na tradição Ismaelita, como já dissemos, é a Vontade ou a Palavra de Deus que dá origem a Primeira Inteligência, permanecendo Deus transcendentemente Absoluto, além de qualquer atributo ou definição. E através principalmente de Hamid al-Din al-Kirmani, talvez o mais importante e influente missionário e filósofo de toda era Fatimida, que a cosmologia da emanação dos dez Intelectos ganhou proeminência entre os Ismaelitas. Ela descreve o
surgimento da Primeira Inteligência, o Arcanjo Primordial, emanação
primeira da Luz Divina. Este é o arquétipo de toda a Perfeição
e Beleza, instrumento da Vontade de Deus e o Véu de Sua Presença.
E é no Amor e Nostalgia deste Primeiro Ser em sua contemplação
e busca pela Luz da Presença de Deus de onde emana, que o Universo encontra
seu propósito. Algumas fontes descrevem a emanação da Segunda
e Terceira Inteligências a partir das dimensões superior e inferior
da Primeira Inteligência. As outras sete Inteligências emanariam
então da Segunda Inteligência, e da Terceira os arquétipos
da Matéria e Forma, com as nove esferas celestes, os sete planetas e
o mundo sublunar. Cada esfera estaria então relacionada a uma Inteligência,
e à Décima caberia então, como já foi dito, o papel
de Demiurgo e orientador do Homem, o microcosmo que em sua essência reflete
toda a Criação. Mas o mistério
encontra-se na figura da Terceira Inteligência, o Terceiro Arcanjo, o
Arcanjo Gabriel, emanado a partir da Díade Primordial. E é a partir
deste mistério que a eternidade é rompida, e tem início
a formação do Cosmos. De qualquer forma
a hierarquia e o reconhecimento do chamado à perfeição
que tem origem na Inteligência que a precede é a condição
para a continuidade da procissão das Inteligências, bem como a
harmonia de todo processo e o propósito de cada Arcanjo na dimensão
pela qual ele é responsável. E é esta
continuidade e harmonia que é rompida com o surgimento do Terceiro Arcanjo,
que na sua demora em reconhecer a precedência dos dois Arcanjos Primordiais,
de reconhecer neles a mediação entre a Origem, retém a
procissão dos Arcanjos e a continuidade da efusão da Luz Divina
no processo da Criação, rompendo assim a Eternidade. E este é
o ponto central nesta cosmologia. A terceira Inteligência, chamada de
Adão Espiritual (Adam Ruhani) e identificada com Gabriel, é tomada
por um torpor e com sua demora surge um lapso, um espaço no Tempo Eterno.
E este lapso tem de ser suprido, este rompimento da procissão das Inteligências
tem de ser superado. Neste ponto então temos as emanações
das outras sete Inteligências, os sete Querubins, também chamados
de as sete Palavras Divinas. E assim, depois de passado seu torpor e reconhecido
seu erro a terceira Inteligência é ultrapassada e se torna
a Décima, o Demiurgo, de onde emanam as Almas humanas. Porém desta
demora, deste erro, nascem o tempo e o espaço que serão o meio
de retorno do Arcanjo e toda sua dimensão. Vale lembrar aqui a doutrina
que Suhrawardi expõe onde de cada Inteligência são gerados
uma Alma, no caso de Gabriel as Almas Humanas, e um Céu, uma dimensão
pela qual ele é responsável e que compartilha de sua nostalgia
e propósito. Assim a partir
do erro do Arcanjo nascem as sete Inteligências que ultrapassam sua posição
o colocando como o Décimo. E no tempo e espaço que surge, nascem
os sete planetas, identificados com os sete Querubins que representam suas esferas
celestes e dimensões, com atributos e funções específicas.
Portanto vemos o próprio surgimento do Universo material, nós
mesmos e o espaço-tempo como meio de suprir o retardamento na Eternidade
causado pelo erro do Arcanjo. E não só suprir esta demora, mas
ser o meio pelo qual o Arcanjo em seu arrependimento e nostalgia retorna com
sua dimensão à posição da qual foi ultrapassado.
E é impressionante
contemplar nesta cosmologia as Leis Universais presentes nos sistemas da maioria
das grandes Escolas de Sabedoria desde tempos muito remotos. Estas são
a Lei das Tríades e a Lei das Oitavas, responsáveis pelo surgimento,
desencadeamento e continuidade de todos os eventos no Universo. E a cosmologia
Ismaelita pontua precisamente as interrupções e os choques necessários
para a continuidade dos processos, elementos sempre presentes na Lei das Oitavas.
O primeiro choque marcado pelo torpor e demora do Arcanjo é suprido pelo
surgimento do Cosmos, e o último choque, necessário para tornar
possível o caminho de retorno, é suprido com o surgimento das
Almas Humanas. Portanto a nossa
dimensão, que emana do Adão Espiritual após seu erro, é
marcada por uma escuridão, pela sombra de seu arrependimento e nostalgia,
que terá de ser vencida e conquistada no seu caminho de retorno. E somos
nós Seres Humanos os protagonistas desta batalha. Contemplem a maravilha
deste mistério, e a elevada estação de onde emana a Alma
Humana. Contemplem sua origem, o ponto onde se encontra, a sua direção
e seu propósito. É este o
chamado (dawa) do qual nos fala a tradição Ismaelita. Este Amor
e nostalgia pela Perfeição, esta Saudade e Necessidade pela Presença
Divina, que penetra e permeia todo o Universo, emanando do Arcanjo Primordial,
o mais Próximo da Luz das Luzes, da Face de Deus. E que a partir de Gabriel,
Adão Espiritual, o Arquétipo Celeste do Adão de quem somos
a posteridade, nos atinge e nos inebria. A Eterna Saudade de Deus que nos recorda
o horizonte único da Alma. Este é o
chamado de retorno que define e distingue a Humanidade entre aqueles que respondem,
e então se tornam companheiros do Arcanjo em seu caminho de retorno e
sua batalha contra a escuridão, e aqueles que se mantém ignorantes
do chamado. Esta escuridão é relacionada com Íblis, que
surge na sombra partir do erro do Arcanjo, e aqueles que ignoram o chamado contribuem
com Íblis em sua disseminação da escuridão. Assim mais uma
vez percebemos a mesma mensagem e chamado que, na tradição Zoroastra,
é feito as Fravartis, arquétipos celestes da alma humana. Ohrmuzd
(Deus) ao criar o mundo como meio de aprisionar Ahriman (Íblis) e mantê-lo
afastado do mundo Espiritual, convoca as Fravartis e lhes dá a opção
de descer ao mundo material encarnadas, para combater Ahriman. Chamado que elas
atendem prontamente, e mais uma vez o destino do Homem e da criação
depende de seu livre arbítrio em ouvir ou ignorar o chamado. O Adão Espiritual
é então, como já foi dito, o arquétipo do Adão
terrestre, que representando o Arcanjo é o responsável pela iniciação
dos seres humanos nos mistérios da Revelação, no chamado
para responder à esta nostalgia e propósito. Da mesma maneira,
cada Imã será o representante e a manifestação do
Arcanjo na Terra, responsável pela preservação e divulgação
dos mistérios, bem como da iniciação dos Homens. Ele será
o orientador nesta batalha de retorno. Então a
Humanidade terá de passar por sete ciclos, que representam as sete posições
perdidas pelo Arcanjo em seu torpor, antes da Grande Ressurreição.
Nela o Qaim, o Imã Ressuscitador, será responsável pela
vitória final do Adão Espiritual, de quem ele é o representante,
mas também a própria manifestação. Estes ciclos são
alternados entre eras de Revelação e eras de Ocultação.
A primeira era se inicia ainda com a revelação plena dos mistérios,
onde toda a dimensão do Arcanjo, todas as almas que dele emanaram, e
por isso sua manifestação, tem plena consciência do chamado
e seu propósito. E assim como manifestações do Arcanjo,
as almas humanas são os anjos terrestres. E com o fim da era de Revelação
e o início da era de Ocultação, onde a escuridão
e a sombra de Íblis se tornam presentes, a mensagem é oculta daqueles
que ignoram o chamado, e é divulgado apenas para os iniciados. Adão é
então o primeiro Imã desta era, responsável pela iniciação
dos seres humanos nos mistérios da revelação e no chamado.
Neste ponto a posição do ser humano depende de sua escolha, e
nesta condição somos Anjos Potenciais. Podemos ouvir o chamado,
recordar nossa origem, e então sermos penetrados por esse Amor e Nostalgia
Eternos. Assim aceitamos a responsabilidade neste batalha, neste retorno que
carrega consigo não só o Arcanjo, mas toda a Criação
de volta a Perfeição, aproximando-a da Presença Divina,
horizonte único de toda a existência. 3. O erro e
Nostalgia. Mas o que é
este torpor que toma o Arcanjo no momento de seu nascimento? E o por que de
sua demora em reconhecer a precedência da Díade Primordial? A tradição
nos conta de um questionamento que surgiu no Arcanjo no momento de seu nascimento.
Uma dúvida sobre se realmente ele haveria procedido da Díade Primordial.
Se ele não poderia ter sido criado sozinho, independente, ou mesmo primeiro.
Assim, demorou em reconhecer a hierarquia e sua condição, e desse
erro nasce então a sombra e a escuridão a qual já nos referimos. E é exatamente
aqui que reencontramos outro mistério do qual nos fala Suhrawardi em
seu Os Ruídos das Asas de Gabriel. O mistério das asas de Gabriel,
onde o Sheiq al-Ishraq nos fala que de sua asa direita emana a Luz de sua relação
com Deus, e da asa esquerda a escuridão de seu poder-não-ser.
Citando suas próprias palavras: "... E da asa esquerda de Gabriel,
aquela que contém uma certa medida de trevas, uma sombra desce, e é
desta sombra que provém o mundo das miragens e ilusão (n.t. nosso
mundo), como diz essa sentença de nosso Profeta: 'Deus criou as criaturas
nas trevas, e depois ele estendeu sobre elas a Luz'. As palavras:' Ele criou
todas as criaturas dentro das trevas' são uma alusão à
sombra da asa esquerda de Gabriel, assim como estas últimas palavras:'em
seguida Ele estendeu sobre elas a Sua Luz' são uma alusão ao raio
de Luz emanada de sua asa direita". Muitos escritores
relacionam o erro do Arcanjo com o pecado original de Adão, como se o
seu erro fosse o desencadeador ou o responsável pela desobediência
de Adão no Paraíso, que terminou por expulsá-lo. Mas não
necessitamos nos alongar aqui, pois o ponto central está na perspectiva
que situa o Ser Humano como emanação de uma das Inteligências,
um dos Verbos de Deus, seus intermediários, seus Arcanjos. E assim apresenta
o Homem como ele próprio um dos Verbos de Deus, como Anjos. Porém
dentro de uma potencialidade que precisa ser desenvolvida e posta à prova.
E esta prova esta na sombra e na escuridão gerada pelo próprio
processo da criação que se desenvolve em graus crescentes de afastamento
da Luz da presença Divina e Seu imperativo criativo. Mas que define a
trajetória do Homem, o seu propósito e responsabilidade. Não nos
esqueçamos que esta escuridão que Íblis representa, é
que ira confrontar a Jesus, Buda e muitos místicos nos últimos
estágios de sua purificação, antes de serem permitidos
ingressar na Luz da Unidade Divina. O que faz dessa escuridão não
só um elemento intrínseco ao processo da Criação,
mas também algo essencialmente necessário na realização
de seu propósito. Esta é a própria escuridão do
mundo das miragens e ilusão que Suhrawardi nos recorda. Este é
o esquecimento que Íblis em sua inveja e orgulho jurou disseminar entres
os Homens. E esta é a escuridão do esquecimento e do sono intrínseco
à vida neste mundo, que tem de ser vencida para que o Ser Humano recorde
sua condição e ouça o chamado e a nostalgia de sua Essência,
reflexo da Luz de Deus. E neste sentido
a Alma humana recebe uma posição ainda mais elevada que os próprios
Anjos, pois contém potencialmente nela todas as dimensões presentes
na Criação. Sendo então aquele que pode se tornar o representante
e a manifestação do Homem Perfeito perante a Criação,
o Insan il-Kamil, a Pupila de Deus, os olhos através dos quais Deus contempla
sua Criação e conhece a si mesmo. Como o Profeta Maomé
nos relata num hadit onde Deus diz: "Eles nunca cessam de se esforçarem
para se aproximarem de Mim até que Eu os Ame. Então, quando Eu
os amo, Eu sou seus ouvidos por onde escutam, seus olhos por onde eles vêem,
suas mãos através das quais eles seguram, e seus pés através
dos quais eles andam". E assim realizam o seu propósito e da própria
Criação segundo outro hadit: "Eu era um tesouro oculto e
criei a Criação para que Eu pudesse Me Revelar e vir a me conhecer". Devemos então
lembrar que à todos os Anjos foi pedido que se prostrassem perante Adão,
que seria então o Califa de Deus, seu representante e o tesouro de seus
Segredos. E que Maomé em sua ascensão à Presença
de Deus, penetrou por através das Esferas Celestes e seguiu adiante,
para além de onde era possível à Gabriel. O Corão,
como a própria Bíblia, nos revela que "Deus insuflou no homem
o Seu Próprio Espírito". E sendo Gabriel, a terceira Inteligência,
o Adão Espiritual e o veículo deste sopro de onde emanam as Almas
Humanas, e quem soprou em Maria o Espírito de Jesus, nos questionamos
mais profundamente a razão desta demora e torpor que desencadearam o
processo da criação do Mundo e do Ser Humano. Todos aqueles que
trilham ou trilharam um Real caminho místico são unânimes
em descrever os momentos em que são primeiramente atingidos por este
Amor e Nostalgia Divina como um torpor, um desespero, um êxtase ou quase
uma loucura, e por isso nas poesias místicas são chamados de os
bêbados ou loucos de Deus. Assim a própria intensidade do Amor
e Saudade de Gabriel pela Presença Divina, que a Luz que à ele
foi dado carregar lhe conferiu, poderia ser a responsável por essa intoxicação
e este torpor de nostalgia. E nesse estado como poderia ele ter olhos para outro
que não Deus? Como poderia ele então reconhecer precedências,
reconhecer outra presença se não a do Amado? Como poderia ele
ter consciência dos Arcanjos, se nessa Saudade houvesse perdido a sua
própria? Esta é a
Luz da Perfeição, a Luz de Maomé (Nur-i-Muhammadi), que
representa a Luz de Insan il-Kamil, o Reflexo, o Véu e a própria
Face de Deus. É o Arquétipo de toda a Criação que
deveria ser depositada no Ser Humano, presente no final Dela, para que este
despertasse. E em sua jornada de retorno tornasse a presença de Deus,
oculta em toda a Criação, manifesta através de seu ato
de contemplação. E este ato, através de Insan il-Kamil,
se tornaria o próprio ato de contemplação de Deus descobrindo
e reconhecendo a Si Mesmo. Assim a Criação
descrita como escuridão, determina os níveis e dimensões
da expressão da manifestação do Absoluto, em graus crescentes
de afastamento da Origem. Mas também determina graus crescentes na manifestação
infinita de seus atributos. E é a trajetória do Ser Humano em
direção à Perfeição, que em seu retorno para
a Unidade Divina trás com ele, de volta, toda a Criação. Assim, talvez parte
desta conquista e vitória do Arcanjo sobre a escuridão, na qual
depende seu retorno, venha da compreensão de que seu erro é parte
da perfeição do Decreto Divino. E nesta analogia, o mesmo é
válido em relação ao pecado de Adão, que só
reconquistaria a Perfeição perdida ao compreender o profundo mistério
de seu propósito. E que seu pecado, como o do Arcanjo, são o meio
através do qual o mistério da Vontade Divina se realiza. Portanto,
erro e pecado são também expressões desta Vontade e Perfeição,
e que não caberia à eles e nem lhes seria possível evitar.
Mas é responsabilidade deles superar e retornar, trazendo a Criação
de volta à Perfeição que lhe é inerente. E retornar
à dimensão que lhes é de direito. E como um é
o veículo e o outro a própria Luz da Criação, talvez
seja o próprio arrependimento e culpa que ambos carregam, os responsáveis
pela sombra desta escuridão que separa a Criação, e eles
próprios, de Seu Criador. Assim as sete eras
da Humanidade, que são o tempo da batalha e a duração deste
retorno, encontram seu eco dentro do Sufismo. Onde os sete níveis da
Alma (Nafs), da Alma degenerada a Alma Perfeita, e os sete órgãos
sutis (latifas) de percepção da Alma, representam a aquisição
de atributos e a purificação da alma em cada estágio até
a Perfeição, até se tornar o Insan il-Kamil. E em ambos
os casos estes estágios estão relacionados a cada um dos Profetas,
assim como nos ciclos das eras da batalha de retorno. Contemplamos então
a história do Universo se repetir no Ser Humano, transformando a Ressurreição
e o Dia do Juízo em eventos da história presente da vida de cada
um, possível a cada passo de nossa trajetória. Este é o
julgamento eterno de nossa consciência perante a Presença Divina,
o momento de retorno à Presença do Amado. Portanto, também
o papel do Qaim, o Imã Ressuscitador, que sela a vitória e o retorno
do Arcanjo, instaurando a Luz da Perfeição novamente na Criação,
se torna uma responsabilidade de cada indivíduo que ouviu o chamado. Na realidade, esta
é a nossa própria batalha contra a escuridão que se instaurou
em nós com nosso nascimento e crescimento no mundo. A escuridão
da sombra de nossa própria ignorância e o esquecimento de nosso
propósito Divino. E assim negamos a Beleza maior, e a Perfeição
mais exaltada da Presença de Deus, perante qual todo a Criação
se prostra em adoração, girando apaixonada no eterno Amor da Nostalgia
Divina do retorno. Reflitam; pois estes são os segredos ocultos da história da Alma, sua origem e sua natureza, o seu destino e seu Propósito. |